Síntese para Defesa da Dissertação

O sono da razão
produz monstros. ¬Goya

Escrever-se para superar a morte: Jean-Paul Sartre e liberdade n’As palavras.

O objetivo deste trabalho é compreender a escrita de si empreendida por Sartre em sua obra As palavras, ao mesmo tempo em que busca explorar outros elementos constituintes dos processos dos escritos memorialistas e autobiográficos. Queremos aprofundar o estudo acerca da representação autobiográfica como estratégia de constituição de um eu que se faz mediante a escrita. Os territórios nos quais se relacionam memória e ficção, a escrita como reinvenção de si mesmo, a liberdade de encenar-se num tempo de posterioridade e a recriação dos fatos como acontecimentos que podem ser lembrados constituem o quadro no qual iremos nos mover.

Podemos dizer que a mente humana não existe de forma autônoma. Mas existe enquanto complexo relacional, doadora de sentido e dotada de sentido. Depositária das experiências do passado, que são processadas de forma ininterrupta e capazes de significar o futuro. Diante disto cabe perguntar: Como se constitui este universo mné-si-co a partir do qual o escritor fala de si em sua obra autobiográfica? Ou, dito de outra maneira, qual é o critério a partir do qual, uma lembrança ganha o direito de furtar-se a amnésia? Porque algumas lembranças permanecem, ao passo que outras se encontram, “aparentemente” perdidas na mente humana. Este rastro privilegiado que os homens deixam de si mesmos, estelas funerárias, papiros, palimpsestos, tábua de cera, livros, bibliotecas, e até os e-mails efêmeros que apagamos depois de ler, são exemplos de mecanismos facilitadores do processo de memorizar e lembrar.

Numa cadeia infinita de processos a escrita re-elabora – labora novamente – o vivido. O análogo do vivido não pode ser confundido com o efetivamente vivido. Mas é mediado, representado, substituído pela grafia. Circunscreve-se a leis próprias da língua e, antes disto, atende a processos de composição e representação do próprio sujeito que escreve. Sartre n’As palavras se pergunta sobre esta dicotomia vivido/acontecido [citando]: “O que acabo de escrever é falso. Verdadeiro. Nem verdadeiro nem falso, como tudo o que se escreve sobre os loucos, sobre os homens. Relatei os fatos com a exatidão que a minha memória permitiu. Mas até que ponto creio no meu delírio? Esta é a questão fundamental e no entanto não sou eu quem decide sobre ela.”

Na construção de seus escritos memorialistas Sartre realiza uma tripla representação. Enquanto quem escreve de si, inscreve-se no primeiro plano de representação, pois a escrita é uma mediação, uma representação do acontecido. Mas seu interlocutor, que é personagem criança possui igualmente uma representação de mundo, posto que inserido no mundo também apreende este mundo. Mas esta apreensão é estabelecida a partir de uma terceira, que é a representação do mundo a partir da ótica dos adultos e dos livros de que se servia, que filtravam o mundo e transcreviam este mundo para o pequeno Sartre. Esta série de deslocamentos instaura uma realidade muito mais de caráter significativo do que de caráter ontológico. A espessura das coisas está definitivamente atravessada pelos múltiplos sujeitos que a representam.

Sua obra literária apresenta-se como uma tentativa sempre constante de conferir sentido às inúmeras existências de seus personagens e, em última instância, à sua própria vida.

O argumento, os personagens, o detalhe das aventuras, tudo devia aparentar como sendo forçosamente verdadeiro. Autor original sempre retocava, remoçava, adotara o cuidado de trocar o nome dos personagens. [Diz ele] “Essas ligeiras alterações me autorizavam a confundir a memória e a imaginação”.

Os limites da memória são, propositadamente, confundidos com os da imaginação num movimento que sela, por definitivo, suas interdependências. O ficcional está definitivamente instaurado. O verdadeiro se impõe pela narrativa fluente do ocorrido, ao mesmo tempo em que se mostra nas lacunas do não dito.

Podemos dizer então que escrever é alienar-se do mundo vivido, é instaurar universos peculiares, carregados do sentido doado por aquele que escreve. Embrenhar-se no mundo da escrita tem, necessariamente, como contrapartida, o afastamento do mundo real desprovido de encantamento, fastidioso. As exigências da escrita implicam romper com os liames que atam o narrador ao mundo real.

Uma primeira consideração que podemos fazer diz respeito ao caráter proposital, deliberado, de que se reveste quem escreve acerca de si. [Draaisma] “na escrita expõe-se a versão da experiência, o resultado da triagem e da perspectiva”. Resulta de uma conveniência e visa a construção de uma imagem a ser apresentada a um outro. A construção desta autenticidade serve-se dos de todos os recursos disponíveis, mas não hesita em lançar mão da mentira e do engano, se assim for preciso. Quando afirmamos que a memória “distorce, filtra e deforma, cuida melhor de certas coisas que de outras”, é justamente por este compromisso com a perspectiva de quem narra. Pois aquele que escreve a partir de suas lembranças repete o ciclo e dá destaque ao que lhe interessa. Reforça o rastro e apaga o que não convém.

Os inúmeros processos mentais a partir dos quais os acontecimentos são reelaborados, reorganizados, resignificados, são tentativas mais originais do sujeito de construir-se a partir da escrita. As elaborações escritas representam este mesmo movimento, mas buscam o consentimento do outro. Escreve-se para construir, junto ao outro, que atua aqui de maneira especular, o próprio eu. Este eu que se representa diante do outro mostra-se como puro desejo, e ancora suas fantasias nos acontecimentos que é capaz de escrever. Mas amálgama, rearranjo de impressões, tecedura de lembranças e esquecimentos. Colcha de retalhos, onde os fragmentos só existem de forma relacional uns com os outros. O que se pretende é a autenticidade, não a garantia do ocorrido. Sartre ao pensar sobre a literatura já colocara a linguagem como um duplo, capaz de proteger-nos dos outros, mas também instrumento de desvelamento do mundo e possibilidade de ultrapassagem do próprio homem. Toda a literatura sartreana expressa este projeto de lançar-se no mundo, sem limites nem constrangimentos, ou melhor, tendo como único constrangimento a própria liberdade. Mas com total liberdade para encenar a si próprio. O eu que se representa enquanto personagem ou, o eu que encontra eco no mundo que o rodeia e no qual está situado realiza esta ficção a todo instante. Sartre dispõe da linguagem, revela sua competência como escritor maior, usando da farsa, da dissimulação, com a mesma mestria que relata acontecimentos que se afirmam sem nenhum esforço e dos quais nos tornamos crédulos durante a leitura.

Um outro momento que podemos destacar em As palavras diz respeito ao uso da prosa e do cinema como estilos privilegiados para dar vazão ao ficcional. Toda esta estratégia tem como objetivo confundir os limites da memória com a imaginação. Esta mistura entre o imaginário e o memorial demonstra, mais uma vez, os tênues espaços que os separam. O território limítrofe é também o que os alimenta. O imaginário constitui a memória, ao mesmo tempo em que a memória fornece a matéria para o imaginário. Relação esta de simbiose que, torna-se impossível demarcar novamente os terrenos de um e de outro.

Gostaríamos de concluir ressaltando o papel da liberdade como elemento tracionador do processo de escrita das memórias sartreanas. Um “Outro que eu pretendia ser aos olhos dos outros”. Neste jogo de identidades, o papel da liberdade é decisivo. A situação frente aos outros orienta-se a partir de escolhas, em função de um projeto que deve ser confirmado ininterruptamente. O papel ativo do eu que se sabe dependente do olhar dos outros, mas livre para escolher o que quer ser. Ao longo da narrativa construída em As palavras, percebemos a preocupação de Sartre em enfatizar mais os desafios que estavam por vir do que as conquistas. Ao afirmar que desde pequeno escolhera o veneno que era ser escritor, podemos perceber a constituição de uma reserva, um álibi onde a despeito de qualquer adversidade, os horizontes ainda continuam escancarados à sua frente, sem limites. Podemos afirmar que a escrita de As palavras revela uma tentativa persistente de constituição do perfil do escritor Sartre. Propositadamente, misturam-se os relatos dos acontecimentos da infância, contaminam as reflexões do presente e prestam-se a conferir uma identidade a um eu que é produto literário. Confundindo autor e personagem, o eu que surge é mágico, fantasioso, mas nunca sem um traço, por menor que seja, daquele que se reinventa. Personagem especular que outorga a densidade pretendida a quem escreve, permitindo ao autor o ato de reencenar-se, posto que é, aquele mesmo, criação sem limites de si e, por isto mesmo, imagem que exprime uma ausência denunciada que exige ser completada infinitamente.

Suprime qualquer tipo de restrição ou cerceamento que pudesse tolher o fazer-se enquanto existente – ser que se lança para fora, ex-sistere. Escrever mostra-se então como possibilidade privilegiada de tornar-se livre, constituir-se enquanto existência individualizada sem reservas, ensaiar as inúmeras possibilidades que o homem tem diante de si. Escrever para Sartre vai além do fazer-se humano de forma despretensiosa, pois significa, em última instância, superar os limites do homem situado e transcender. Vencer a morte e instaurar a vida. Negar a finitude e avançar em direção ao futuro. Enfim, imortalizar-se. Em síntese: Escrever-se para superar a morte.