Pensadores

O que é filosofia?

"Passar do senso comum à consciência filosófica significa passar de uma concepção fragmentada, incoerente, desarticulada, implícita, degradada, mecânica, passsiva e simplista a uma concepção unitária, coerente, articulada, explícita, original, intencional, ativa e cultivada" (Demerval Saviani).

Vamos tentar resolver esta questão (que não é simples), usando dois textos. No Texto 1 faço uns apontamentos em cima do texto de ARANHA, Maria Lúcia de Arruda (Filosofia da educação). Já o Texto 2 é de John Shand e situa o problema de forma mais ampla, como uma questão de postura diante do mundo.

O que é filosofia?

Maria Lúcia de Arruda Aranha

1. As diversas abordagens do real
A autora começa sua análise baseando-se na diversidade das "maneiras pelas quais o homem entra em contato com o mundo", destacando-se as "as abordagens mítica, religiosa, artística, científica, filosófica e do senso comum" que não apresentam-se de forma "excludentes, podendo coexistir em um mesmo indivíduo" (p.104).

Avançando em sua abordagem, Aranha afirma que "entre os povos tribais o mito é uma estrutura dominante (...) baseia-se na crença dos deuses e exige a execução de rituais que permeiam as atividades técnicas: os instrumentos são mágicos; a origem das atividades é divina; as manifestações artísticas, bem como as relações entre os homens (...) são acompanhadas de rituais baseados em crenças míticas (...) tudo é mito e tudo se faz por magia" (p.104).

Quando o "mito deixa de ser uma forma abrangente de compreensão do real, (...), o conhecimento se seculariza, isto é, deixa de ser predominantemente religioso" (p.104). Esta estrutura de conhecimento empírico é chamada de senso comum e origina-se na herança recebida por um grupo social, desenvolvida a partir de experiências fecundas e continuamente transformadas, passando de senso comum a bom senso.

Ora, podemos afirmar que o senso comum "é fragmentado, difuso e , num primeiro momento, não questionado, pois é um conhecimento ametódico e assistemático" (p.105). Vale ressaltar que nas sociedades autoritárias o senso comum assume um caráter ideológico que corrobora os interesses dominantes.

A partir de meados do séc. XVI identificamos uma outra forma de abordagem do real: ciência. Apoiando-se nos "recursos da experimentação e matematização, foi possível à ciência delimitar os objetos a serem estudados, descobrindo regularidades que permitiram estabelecer leis gerais e teorias nos fenômenos observados" (p.105). Mesmo assim, não podemos deixar de ressaltar que "embora rigoroso e eficaz, o conhecimento científico é apenas uma das formas de conhecimento da realidade, e como tal, reduz nossa experiência do mundo que também se constitui de intuições, imaginação, crenças, emoções e afetividade" (p.105).

No próximo tópico, a autora procurará situar as bases a partir das quais o pensamento filosófico irá se erigir.

2. O conceito de filosofia

Origem da filosofia "A filosofia nascente rejeitava as impressões míticas que (...) aceitavam a interferência de agentes divinos na natureza" e "surge como um pensamento reflexivo que busca a definição rigorosa dos conceitos, a coerência interna do discurso a fim de possibilitar o debate e a discussão" (p.105).

A partir disto, apoiando-se na idéia de admiração proposta por Platão, a autora avança em sua análise afirmando que "a admiração é a condição da qual deriva a capacidade de problematizar" (p.105). E, pelo fato do filósofo grego refletir sobre todos os campos da indagação humana, ele pode ser considerado de certa forma um cientista.

Filosofia e ciência A separação entre filosofia e ciência acontece a partir da revolução científica ocorrida no séc. XVII. Este processo avança até o séc. XIX, quando vão "se constituindo os métodos das chamadas ciências particulares (...) delimitando campos específicos da pesquisa" (p.105).

Neste ponto a autora se pergunta pelo "que resta à filosofia ao longo tempo com o aparecimento das ciências particulares" e logo em seguida afirma que "a filosofia continua tratando dos mesmos objetos abordados pela ciência" sem "jamais deixar de considerar o objeto do ponto de vista da totalidade". A filosofia assume uma posição de estar "presente como reflexão e crítica a respeito dos fundamentos desses conhecimentos e desse agir" (p.106).

Infere ainda que "as conclusões da ciência têm um caráter de juízos de realidade" e a "filosofia faz juízos de valor, não aborda a realidade apenas como ela é, mas como deveria ser". E, por isto mesmo, "ao criticar a realidade em que vive, o filósofo projeta um futuro em que uma outra realidade será construída" (p.106).

O processo do filosofar Ao abordar este tópico, Aranha parte do princípio de que a abordagem da filosofia é necessariamente histórica e por isso, "não precisamos ser filósofos profissionais para nos ocuparmos com questões filosóficos" (p.106). A atitude de reflexão traz alguns desdobramentos importantes, pois podemos dizer que "refletir é retomar o próprio pensamento, pensar o já pensado, voltar para si mesmo e colocar em questão o que já conhecemos" (p.106).

Fazendo um paralelo com o filósofo da vida, diz a autora que a reflexão do filósofo especialista é muito diferente, "na medida em que conhece a tradição dos pensadores, debate com os teóricos do seu tempo e cria conceitos, desenvolvendo um método e uma maneira rigorosa e sistemática de pensar" (p.107).

Apoiando-se na contribuição dada por Demerval Saviani que diz que a "reflexão é propriamente filosófica quando é radical, rigorosa e de conjunto" (p.107), Aranha enuncia cada um destes aspectos presentes na definição de Saviani.

"A filosofia é radical enquanto explicita os fundamentos do pensar e do agir", é "rigorosa porque dispõe de um método claramente explicitado que permite proceder com rigor, garantindo a coerência e o exercício da crítica" através de uma "linguagem rigorosa que permite definir claramente os conceitos, evitando as ambigüidades" e "de conjunto porque é globalizante porque examina os problemas sob a perspectiva do todo". Disto resulta "sua função de interdisciplinaridade que permite estabelecer o elo entre as diversas formas do saber e do agir humanos" (p.107).

3. Importância da filosofia

Inserida num contexto pragmático presente no mundo contemporâneo a filosofia não encontra muitos adeptos. Contudo, "a filosofia é necessária (...) e quer resgatar assim a unidade que se encontra no sentido humano do pensar e do agir" garantindo o "distanciamento para a avaliação dos fundamentos dos atos humanos e dos fins a que eles se destinam" (p.107).

Rompendo com o não questionamento a filosofia impede a estagnação e assume a "função de desvelar as ideologias, as formas pelas quais é mantida a dominação" tendo como vocação "desvelar o que está encoberto pelo costume, pelo convencional, pelo poder. Por isso a atitude da filosofia exige coragem. A filosofia não é um exercício puramente intelectual. Descobrir a verdade é aceitar o desafio da mudança, é ter coragem de enfrentar as formas estagnadas do poder que mantêm o status quo" (p.107-8)

4. Filosofia da educação

O processo de transmissão da cultura de um povo se faz mediante a educação, "seja de maneira informal ou por meio de instituições como a escola". Por esta razão a "teoria, contudo, é necessária para que se supere o espontaneismo, permitindo que a ação educacional se torne mais coerente e eficaz". Lembra a autora que a teoria "não se desliga da realidade, mas nasce do contexto social, econômico e político em que vai atuar. Quanto mais rigorosa for, mais intencional será a prática" (p.108).

A postura do filósofo deve ser então a de "acompanhar reflexiva e criticamente a ação pedagógica de modo a promover a passagem 'de uma educação assistemática (guiada pelo senso comum) para uma educação sistematizada (alçada ao nível da consciência filosófica)'[2]" (p.108)

Segundo esta perspectiva "o filósofo indaga a respeito do homem que se quer formar, quais os valores emergentes que se contrapõem a outros, já decadentes, e quais os pressupostos do conhecimento subjacentes aos métodos e procedimentos utilizados". Neste momento podemos destacar os aspectos antropológicos, axiológicos e epistemológicos aí presentes. "Qual a concepção de homem que orienta a ação pedagógica", é uma questão cujo exame evita uma educação abstrata da "criança em si, de homem em si"(p.108).

Estes aspectos não esgotam a "função de interdisciplinaridade pela qual estabelece a ligação entre as diversas ciências e técnicas que auxiliam as pedagogias".

Finalmente, e tendo sempre presente o "questionamento sobre o que é a educação, a filosofia não permite que a pedagogia se torne dogmática, nem que a educação se transforme em adestramento ou qualquer outro tipo de pseudo-educação". Isto implica que o formação do pedagogo tenha um caráter de "politização e fundamentação filosófica de sua atividade" (p.108).

Considerações finais

A abordagem proposta pela autora apresenta algumas características muito interessantes e bem apropriadas para o nosso contexto. Gostaria de destacar algumas delas:

Por fim, considero muito oportuno ressaltar o caráter de historicidade e concretude conferida à filosofia em sua análise, ciente da sua trajetória e comprometida com o processo de construir novos horizontes. Ter a coragem de afirmar que a prática filosófica é necessariamente uma prática política e por isso sua ação tem implicações igualmente políticas, já denota um grande compromisso com um projeto de transformação maior para o qual todos são chamados. Especialmente nós que intencionalmente optamos por construir o processo de educação neste país, estabelecendo as condições sobre as quais o conhecimento será produzido, o conteúdo deste mesmo conhecimento, sua validade e profundidade, além do compromisso com os desdobramentos daí decorrentes.

Educar não pode estar circunscrito aos limites do repetir, mas deve ser um movimento sistemático, capaz de sempre criar condições para o surgimento do realmente novo.

Todas as citações presentes neste estudo referem-se à obra ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da educação. 2ª Ed. São Paulo: Moderna, 1996. 234 p. Demerval Saviani, Educação: do senso comum à consciência filosófica, p.54

O que é a filosofia?

John Shand, Open University

O texto original encontra-se no endereço: http://criticanarede.com/oqefilosofia.html. Ele é mais amplo que o recorte que fizemos e aborda outras questões que não nos interessam diretamente. Quem quiser pode conferi-lo na integra.

A filosofia é uma grande aventura intelectual, ao mesmo tempo que o seu objecto de discussão é uma das coisas mais importantes que podemos fazer com as nossas vidas.

Há uma anedota recorrente entre muitos filósofos profissionais, que envolve um deles a ser encurralado durante uma festa por alguém que ao saber que se trata de um filósofo lhe pergunta: "Bom, o que é então a filosofia?" A piada reflecte na verdade o desconforto de muitos filósofos e a desconfortante consciência de não serem capazes de dar uma resposta directa e clara. Muitos filósofos recorrem ao método de responder por listas, explicando que a filosofia é acerca de "questões fundamentais" como "a verdade", "o que se pode conhecer?", "qual a natureza de uma boa acção?", "qual a natureza da mente e a sua relação com o corpo?". A outra maneira de lidar com a questão é algo evasiva e envolve afirmar o menos possível, algo como: "Bom, a melhor maneira de compreender o que é a filosofia é fazê-la." É provável que ambas as respostas, embora tendo um fundo de verdade, deixem os interlocutores perplexos, e com razão, insatisfeitos e com vontade de se afastarem para ir buscar outra bebida — para grande alívio do filósofo.

Penso que cabe aos filósofos lidar frontalmente com esta questão. Afinal, somos pagos para isso. A minha resposta imediata, que mais tarde terá de ser ligeiramente aperfeiçoada, a esta questão é a seguinte:

A filosofia é o que acontece quando se começa a pensar pela própria cabeça.

Pode-se acrescentar um pouco mais. Assim que nos libertamos dos hábitos das crenças recebidas, as que por acaso se adquiriu mesmo acerca de questões básicas, e começamos realmente a pensar acerca daquilo em que devemos acreditar, à luz da razão (argumentos) e indícios, começamos a fazer filosofia. A "tradição" de se apoiar antes em "autoridades" e "textos sagrados" é o estado normal das coisas e não a excepção na história — para muitos é ainda a maneira natural de viver. Além disso, pensar por si próprio não é algo que se leve a cabo facilmente por mero capricho, mas antes algo que é preciso reforçar como a um músculo, através de bons hábitos mentais. A filosofia é um modo de vida, que se constrói ao longo dos anos; o pensamento filosófico é um estado de espírito que se torna parte da própria natureza de uma pessoa.

É comum encarar-se a filosofia como um luxo imprático, desnecessário. Uma futilidade, lúdica na melhor das hipóteses, que se acrescenta à vida depois de se ter tratado das coisas práticas. Mas isto é um erro.

Longe de ser desnecessária, a filosofia é inevitável a partir do momento em que as pessoas deixam de tomar por adquirido as crenças que receberam e, ao invés, começam a pensar nelas com cuidado, autonomamente. A glória da filosofia — e seguramente um dos aspectos imediatamente interessantes para os que se sentem atraídos por ela — é nada estar interdito, nem mesmo o valor da razão, ou, na verdade (embora isto possa parecer paradoxal), o próprio estatuto da filosofia. Não há restrições. Só algo como argumentação e a discussão sem limites parece constante. É uma liberdade maravilhosa.

Ou somos escravos das crenças que por acaso adquirimos através das circunstâncias contingentes da maneira como fomos educados e do lugar em que o fomos, ou somos até certo ponto filósofos. A filosofia é o bastião do pensamento livre e da exploração de ideias, acima de tudo.

A filosofia por vezes trata a questão da maneira como devemos viver. Pode-se argumentar que a própria adopção de uma atitude filosófica é exactamente o modo como se deve viver — tudo o resto é submissão crédula. Claro que se trata de uma questão de grau, mas na maioria dos casos é um bilhete de ida para a liberdade de pensamento: depois de o experimentar ninguém quer regressar à escravidão novamente.

Seria errado pensar que a filosofia nos deixa constantemente num estado de dúvida vaga.

Aceita-se as próprias crenças com base nos melhores argumentos. Mas deixa-se a porta entreaberta à discussão suplementar. Na verdade são os que adoptam as suas crenças como actos de vontade e fé que se apoiam em terreno instável, onde podem ser derrubados por acaso, com as consequências dolorosas da desilusão, do vazio e da perda. O resultado pode ser catastrófico porque caem, se o fazem, de uma altura tal e de um lugar onde se julgavam absolutamente seguros. Depois disso, o quê? A filosofia não sonha tão alto. Está também preparada para viver corajosamente com isso. Apesar de mudarmos de crenças à luz de novos argumentos, podemos assegurar-nos que, da última vez que defendemos uma perspectiva, fizemos o melhor para chegar realmente ao fundo da questão. A filosofia não gera a dúvida vazia nem uma certeza inalcançável.

Como modo de vida, a filosofia e o pensamento filosófico não prometem a felicidade, mas penso que realçam o que há de melhor nos seres humanos. A filosofia dá corpo àquilo que há de mais nobre na nossa espécie.

A casa que os filósofos construíram

A filosofia assemelha-se muito a uma casa que se constrói sobre estacas num rio. Nessa casa podemos fazer todo o gênero de coisas — construir coisas, movê-las de um lado para o outro — mas estamos sempre cientes de que a estrutura é suportada por pilares assentes em algo potencialmente e, amiúde, realmente inconstante. A filosofia desce repetidamente para ver como estão as coisas perto da base dos pilares e na verdade inspecciona os próprios pilares. As coisas podem precisar de mudança lá em baixo. Para os filósofos isto não é apenas a natureza da filosofia mas a condição intelectual genuína da humanidade. É a filosofia que presta uma atenção detalhada a essa condição e a leva a sério. Isto em vez de a ignorar ou resolvê-la de um modo sofístico.